A “Democracia é o nosso lugar comum”, “a Democracia está viva“, “a Democracia está sob ataque.“, “proteger a Democracia e os nosso valores democráticos”. Nunca, como hoje, as palavras democracia e valores democráticos estiveram tão presentes no léxico público, repetidas até à exaustão por políticos, jornalistas e comentadores, quiçá um exercício de reafirmação interessado em esconder fragilidades ou simplesmente a aplicação da máxima goebelliana de que “uma mentira dita mil vezes eventualmente torna-se verdade”. Em psicologia este fenómeno foi eventualmente classificado como o efeito da ilusão da verdade.
No entanto, apesar da hiperdosagem diária raramente se vê o cidadão comum discutir a “democracia”, o que de facto é e como funciona. O entendimento que este faz da democracia é essencialmente de partidos políticos, eleições e, entre os mais atentos, os conceitos de liberdade de imprensa e expressão. Esses elementos são tomados como evidência de que o povo (demos) governa (kratos), chegando-se ao extremo de o processo eleitoral ser frequentemente classificado como “a festa da democracia”. É esse entendimento superficial da “democracia”, adornado pela aparência da escolha popular, que facilitou a institucionalização de um sistema que nunca foi democrático nem está construído para o ser.

Repúblicas não são Democracias
O equívoco começa quando assumimos viver numa democracia apenas porque realizamos eleições. Portugal, por exemplo, é uma República Constitucional que usa alguns formalismos processuais de índole democrática para reafirmar a ideia de soberania popular. Suscintamente, repúblicas são regimes de governo em que o povo elege representantes, por tempo determinado, para uma estrutura de governo – presidencialista, parlamentarista ou semipresidencialista – que, na prática, concentra toda a autoridade política.
Mas até que ponto podemos considerar democrático um processo que não assegura equidade entre cidadãos e cujos resultados não garantem uma soberania distribuída pelo demos? Nas eleições legislativas portuguesas, a representação parlamentar é determinada por círculos eleitorais e pelo método da média mais alta de D’Hondt. Na prática, isto significa que, em círculos pequenos como o de Portalegre, o voto num partido pequeno dificilmente se converte em mandato. 567 930 é o número de votos que alegadamente não colheu qualquer representação nas eleições legislativas de 2025. Até a nível autárquico, a Assembleia Municipal é essencialmente um órgão deliberativo, estando a execução do mandato praticamente na mão do/a presidente de câmara, mesmo quando eleito/a em maioria relativa.
Estes exemplos não configuram processos verdadeiramente democráticos, mas sim o que se convencionou chamar de “democracia representativa”: um sistema onde o povo raramente exerce o poder de forma directa ou substantiva, limitando-se a delegar. Repúblicas constitucionais, monarquias parlamentares, e outros regimes híbridos, incorporam formas operacionais da democracia – eleições, sufrágio, parlamento e tribunais – que manipulam para sustentar a aparência de governo popular, ao mesmo tempo que mantêm intactas estruturas de poder que limitam a participação efectiva da maioria.
Nesses regimes, há uma aparente separação de poderes a nível do Estado e o povo é soberano; mas a constituição, as regras eleitorais, os limites legais e institucionais foram essencialmente elaborados para garantir a estabilidade do sistema de propriedade e não para promover a igualdade. O resultado é simples e paradoxal: o povo vota, mas raramente governa.
A ilusão da escolha
Se a existência de eleições, sufrágio universal e parlamentos não garante a participação efectiva do demos nas decisões políticas, porque persiste então a ilusão de que vivemos numa democracia real?
O argumento central da “democracia representativa”, ou, na terminologia contemporânea, “democracia liberal”, é de que as eleições asseguram uma distribuição democrática do poder. Essa narrativa ajuda a vender a ideia de instituições políticas enquanto agentes neutros, dependentes do escrutínio e do apoio público. No entanto, esta premissa ignora o papel determinante do poder económico no funcionamento da sociedade. Mesmo quando há sufrágio universal, liberdade de expressão e pluralismo de partidos, essas liberdades operam dentro de um quadro onde a desigualdade de recursos determina quem de facto participa, quem influencia decisões e quem possui voz. Quem detém capital, propriedade, meios de produção e de comunicação, molda a política económica, as decisões legislativas e até a própria agenda pública; e a concentração do poder económico resulta inevitavelmente em maior poder político e social. Neste contexto, o Estado, em vez de funcionar como árbitro imparcial, actua frequentemente em alinhamento com esses interesses, garantindo que o poder efectivo permanece nas mãos da minoria social e economicamente dominante.
Deste modo, as decisões fundamentais sobre economia, redistribuição e justiça social tendem a favorecer quem já detém capital. Historicamente, constatamos mesmo que os regimes ditos democráticos foram formalmente desenhados para preservar a autoridade e os privilégios das elites, nomeadamente através da consagração da propriedade privada. Já a representação popular foi, desde o início, limitada e rigidamente controlada. Isto gera aquilo que se pode chamar de “democracia de fachada”: constituições, leis, regulamentos eleitorais, financiamento de campanhas, sistemas judiciais e burocracias estruturadas para preservar os interesses dos detentores de capital. Estas estruturas simulam participação e igualdade, mas mascaram uma realidade de dominação de classe, influência corporativa e concentração de riqueza. E a aparência democrática funciona para conferir legitimidade interna e internacional ao regime, oferecendo poucos mecanismos de controlo popular efectivo sobre decisões estruturais.
Ademais, o exercício de direitos políticos é condicionado por factores socioeconómicos. Participaçao activa na política, para além do ocasional voto a cada quatro anos, exige recursos como tempo, informação, e organização. Quem vive na precariedade, com empregos instáveis ou baixos rendimentos, raramente dispõe desses meios. O resultado é uma participação desigual que reforça, em vez de mitigar, as assimetrias de poder existentes. É verdade que, ao longo do tempo, reformas e mobilizações sociais ampliaram direitos de voto, aumentaram a participação e incluíram grupos anteriormente excluídos. Contudo, apesar desses avanços, a estrutura central de privilégio e desigualdade institucional manteve-se praticamente intacta.
Imprensa livre? Nem por isso
Parte essencial deste sistema de fachada reside no controlo da informação e da narrativa pública. A noção de democracia baseia-se, em parte, na ideia de uma imprensa livre e pluralista que funciona como vigilante do poder e garante da transparência e da responsabilidade política. Mas a realidade é bem diferente: a concentração dos meios de comunicação restringe a independência e pluralidade da imprensa, acabando a “opinião pública” moldada por quem detém os meios de comunicação. Por outras palavras, a informação que circula na esfera pública é filtrada, enquadrada e hierarquizada pelos interesse dos donos da imprensa, e não priorizando as necessidades democráticas da população.
Mas essa função excede em muito a hierarquização e omissão. Frequentemente a imprensa reinterpreta acontecimentos de forma a reforçar narrativas dominantes. A imprensa não reflecte o mundo; constrói-o ideologicamente. E fá-lo recorrendo a técnicas subtis: selecção de temas, enquadramento emocional, linguagem conotada, repetição e normalização de perspectivas favoráveis às elites económicas, sociais e políticas. A missão da imprensa em informar cede lugar à sua missão real: legitimar estruturas de poder existentes. Isto é possível porque como a informação tem que passar por vários filtros, acaba por se gerar um ambiente noticioso estruturalmente inclinando para a defesa do status quo. Isso significa que não é propriamente necessário censurar, já que a própria lógica de funcionamento da indústria mediática gera autocensura.
Edward Bernays, pioneiro das relações públicas e autor de A Engenharia do Consentimento, foi ainda mais explícito: na sociedade de massas, a gestão da opinião pública é não só inevitável, mas desejável. Para Bernays, o “governo invisível” composto por especialistas em comunicação, publicidade e propaganda é essencial à estabilidade social e à viabilidade da “democracia de fachada”. A engenharia do consentimento consiste precisamente na fabricação deliberada de apoio público às decisões das elites, frequentemente sem que o público se aperceba do processo.
Este enquadramento ajuda a compreender porque é que nas democracias liberais eleições e debates públicos se transformaram em espectáculo, mais próximos do entretenimento político do que da deliberação colectiva. A política mediatizada depende de slogans, imagens, campanhas agressivamente financiadas e estratégias de marketing que reduzem o eleitor a um consumidor de narrativas pré-embaladas. A discussão pública deixa de ser um espaço de reflexão e passa a ser um produto de mercado, cuja função é captar atenção, não informar ou emancipar.
Assim, a liberdade de imprensa que sustenta a democracia é mais retórica do que real. A pluralidade existe, mas dentro de fronteiras ideológicas estreitamente definidas. A crítica é tolerada, desde que não ameace os interesses fundamentais das elites. E a cidadania, privada de informação verdadeiramente independente, participa no processo político com base em percepções moldadas, não em escolhas plenamente conscientes. Como argumenta Chomsky, “a propaganda é para a democracia o que a violência é para a ditadura”, isto é, o mecanismo que garante a obediência política. Não pela coerção física, mas pela manipulação sistemática da percepção.
Resgatar a Democracia com mais Democracia Directa
Se aceitamos a definição de democracia como algo mais do que eleições periódicas, então a maioria das sociedades contemporâneas não podem verdadeiramente ser consideradas democráticas. São sistemas híbridos: repúblicas constitucionais ou monarquias parlamentares com fachada democrática, mas profundamente marcados por desigualdades de classe, poder económico e dominação institucional. Tendo a democracia representativa se revelado insuficiente em assegurar a soberania popular, importa recuperar mecanismos que devolvam ao demos a capacidade efectiva de decidir. E esse mecanismo já existe: a democracia directa, que longe de ser uma utopia oferece um conjunto de instrumentos que podem revitalizar a participação cívica e reequilibrar a relação entre o poder e o demos.
Os referendos, quando usados de forma regular e informada, permitem que a população se pronuncie sobre decisões estruturantes, quebrando a lógica de delegação passiva que caracteriza os regimes representativos. A Suíça é disso um exemplo paradigmático: desde o século XIX, mecanismos como referendos obrigatórios, facultativos e iniciativas populares permitem que os cidadãos rectifiquem leis, proponham reformas constitucionais e controlem directamente o rumo político do país. Estudos mostram que esse envolvimento contínuo fortalece a confiança nas instituições, aumenta a literacia política e reduz as assimetrias de poder no espaço público. Infelizmente, em 50 anos de democracia realizaram-se em Portugal apenas três referendos nacionais, nenhum vinculativo, e o número de referendos locais também se conta com os dedos de uma mão só.
Mas a democracia directa não se limita ao voto referendário. Os orçamentos participativos, que em Portugal começam a ganhar espaço a nível da administração autárquica, demonstram como a participação cidadã pode influenciar a distribuição de recursos públicos, regenerar a esfera local e fortalecer a responsabilização governativa. A utilização de orçamentos participativos melhora não apenas a alocação orçamental, mas também a inclusão social e a transparência processual. Outro mecanismo de democracia directa são as assembleias cidadãs. Estas assembleias permitem deliberações profundas sobre questões complexas, livres de pressões partidárias e influências corporativas. Exemplos recentes na França ou Bélgica mostram que cidadãos comuns, quando devidamente informados, são capazes de produzir recomendações equilibradas e inovadoras, frequentemente mais ambiciosas do que as soluções propostas pelos parlamentos.
Enquanto vivermos numa “democracia para poucos”, onde o poder económico actua em simbiose com o poder político, persistirá a ilusão democrática que legitima as desigualdades da sociedade. Para uma verdadeira democracia, é necessária uma profunda transformação política, económica e cultural. Isso significa reconstruir uma democracia que vai para lá das urnas, uma democracia que assegura igualdade no acesso a recursos essenciais, como saúde, habitação, educação e alimentação, e envolve directamente a população no processo de deliberação e decisão. O recurso a mecanismos de democracia directa reduz a captura do poder pelas elites, fortalece a transparência institucional e resgata a ideia original da Democracia: um sistema em que o povo não apenas escolhe representantes, mas governa activamente a sua própria vida colectiva.
Leitura recomendada:
The Engineering of Consent de Edward Bernays
Inventing Reality: The Politics of the Mass Media de Michael Parenti
Democracy for the Few de Michael Parenti
Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media de Edward S. Herman e Noam Chomsky.


